quinta-feira, 19 de julho de 2007

O vagabundo & a gaita pt. 1

Nessa época eu era muito mais jovem e possuía uma mente fumegante e ativa, que diferente de hoje, está totalmente liquidada das noites incessantes e pesadas dos velhos tempos. Bom, que se dane. Chega de rodeios. Essa é a história da viagem dos seus sonhos.

Eu era um garoto naquele tempo. Consumava meu décimo-nono ano de vida quando uma música azul explodiu dentro da minha cabeça. Ficava atordoado de início, porém com tempo fui-me acostumando e logo me viciei. Eu era um dos poucos jovens brancos do interior que não concordava com a velha opinião do velho pai. Ele me alertava furiosamente e dizia: “Pare de escutar essas músicas de preto, garoto. Amanhã vamos à igreja e você vai se confessar!” E de fato íamos, porém sempre dava um jeito de fugir. Ou então subornava o padre atrás das simples imagens de Cristo com um cigarro. Era um bom moço, aquele padre. Ele sabia das coisas e com certeza devia saber que Deus não se preocupava com o que eu escutava, pois se Ele tem ouvidos, então provavelmente Ele escuta o mesmo quando chora pelos nossos graves erros.

Morávamos num casebre medíocre feito da madeira que meu pai se matou a vida inteira para comprar. Era um bom velho, mesmo que tradicional e confiante demais. Já eu, não estudei e por isso possuía dois trabalhos. De manhã trabalhava com o meu velho em sua fazenda e durante a noite, pulando a janela do meu quarto, lavava pratos no bar próximo. E foi lá que conheci o velho J. com sua gaita surrada e barulhenta. Ele estava lá sempre, sentado naquela caixa fodida e mofada de cerveja. Cantando e tocando, enlouquecidamente. Era um grande cara, com cicatrizes e dores no rabo. Vivia recebendo botinas do dono do bar, que o odiava. Talvez por ser doido ou talvez por ser preto. Só sei que toda noite, quando as garotas tão esquecidas e acabadas como o velho J. e os copos estraçalhados e secos no chão ou no balcão já descansavam, eu me juntava a ele e simplesmente ouvia.

Então um dia, ele simplesmente sumiu. A caixa marginal e suja estava vazia na madrugada uivante. Perguntei para o dono do bar & meu chefe, das botinas imensas e violentas sobre o velho J. e ele me respondeu: “Aquele preto escroto? Estou pouco me importando para aquele rabo nojento. Se bem que eu já sinto saudade de dar uns belos chutes naquele traseiro... Alias, ele deixou algo de lembrança, algo para que sempre lembremos daquele filho da puta. Que grande filho da puta. Ele deixou aquele maldito instrumento estúpido dele jogado no banheiro, ACREDITA NISSO? Ele não sabe ir em lugar nenhum sem cagar a vida dos outros! Que grande...” Deixei o porco de botinas a recitar poesia e corri para o banheiro.

E lá estava a velha gaita, com mijo e moscas voando por cima. Tirei a jaqueta e a embrulhei levando-a para casa. Entrei discretamente pela janela e liguei a luz do quarto. Roubei uma toalha do banheiro e um perfume antigo de meu pai e fiz o velho instrumento voltar ao que era antes. Enquanto passava a fina toalha por dentro encontrei um bilhete discreto & escrito em um papel higiênico. Eram as últimas poucas palavras do velho J. para mim, que apenas dizia: “Eu sinto seu sangue pulsando! Desça o rio M. e vá pela estrada ## e vá viver a vida, garoto”.

Então na mesma noite deixei 50 mangos em cima da mesa do meu velho pai e comprei minha liberdade. Juntei o que tinha e coloquei a velha gaita no bolso do jeans. Ainda era noite. Corri para aquecer o corpo. Eu não tinha nada a perder.

Um comentário:

Belzebuzble disse...

Cara, ficou excelente. Deu vontade de eu mesmo correr até o banheiro do bar e achar essa gaita e descer o louco rio M. atrás da minha vida.